Há quase um ano fechada em casa, sem saída que justifique mais do que as havaianas que usei no verão e os ténis que calço para ir à mercearia desde então, tornei-me numa espécie de matrafona arranjada a meio termo, ou seja, qualquer coisa do tipo "da cintura para cima", mas definitivamente sem incluir sapatos.
Ora bem, se a gravidez dá desejos (ou pelo menos assim o dizem, que eu cá nunca os tive), porquê que a clausura não pode ter o mesmo efeito?
Tirando o desejo de voltar à normalidade, tal como os desejos de grávida, os meus desejos na clausura são também considerados excêntricos. Assim ao nível da grávida que quer comer bagas do Kilimajaro, colhidas por um anão mongol durante o primeiro raio de sol em manhãs de verão.
Se os pais das futuras crianças são obrigados, a bem da sua integridade física e mental, correr seca e meca para satisfazer os desejos da grávida, creio que também não será prudente ignorar os desejos de uma enclausurada.
No meio dos pensamentos sobre os meus desejos exóticos, surgiu-me uma questão: porque razão desejamos nós aquilo que não faz sentido nenhum ter?
No campo dos desejos devia esperar-se que, de certa forma, eles tivessem alguma utilidade imediata, que suprissem uma necessidade básica e de urgência inadiável. Gostava de dizer que sim, de forma prática e inequívoca, mas tal afirmação seria o mesmo que atentar contra a própria natureza dos desejos.
Independente do meu estado de liberdade ou de graça, os meus objectos de desejos sempre foram sapatos. Muitas as vezes saí de casa com a missão de trazer comigo roupa que, na ausência daquilo que procurava, era substituida por mais um par.
A clausura só me aguçou ainda mais o desejo e, no momento em que os meus passeios se resumem à ida à sala e vinda à cozinha, com passagem pela secretária onde trabalho, a necessidade de uns sapatos novos que não vou calçar tão cedo, é quase incontrolável.
Em tempos tinha dito que a minha prenda dos 40 anos seria este, há muito cobiçado, par de sapatos. Não foi e eu sinto-me sem alento para esperar até à chegada dos 41.
Vou dormir mais umas noites sobre o assunto. A almofada costuma tranquilizar mentes inquietas e desejos extravagantes.
Em alturas em que nos sentimos presos, privados de tudo o que gostamos, we have to "shoes" wisely.
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